Os Arquivos como imprescindível memória!
Como a questão da importância dos arquivos históricos se colocou recentemente numa troca de comentários, decidi publicar este texto. Ele exprime bem o que penso sobre o assunto e a importância que para mim tem a preservação do registo da História.
O tema dos Arquivos em matéria de Direitos Humanos afigura-se de suma importância se queremos falar com seriedade histórica “documental” do nosso passado e se pretendemos olhar com lucidez, coragem e frontalidade para o nosso futuro colectivo enquanto Humanidade. Tal implica necessariamente, quanto a mim, a possibilidade de termos acesso a factos e fontes fidedignos e credíveis, sempre que possível comprovados e não manipuláveis, da nossa memória colectiva o que só é possível com a existência de Arquivos bem documentados, actualizados, vivos e acessíveis que permitam o estudo, a reflexão e a pesquisa com fundamento. Só com esse depositário inviolável e insubstituível nos será permitido um correcto olhar sobre o nosso passado a fim de que, esclarecidos, possamos assumir o nosso presente sem preconceitos nem branqueamentos silenciadores da história e perspectivar o nosso futuro, com decoro, no respeito pelas fronteiras fundamentais reguladoras de uma salutar convivência humana que, se não fossem violadas, permitiriam uma convivência sã entre os seres humanos e a construção de um Mundo harmonioso e solidário. E só assim impediremos que a nossa memória e razão se dilua ou, pior, se apague nas brumas dos interesses políticos, económicos ou históricos conjunturais: nada seria pior para o nosso futuro colectivo do que o desvanecimento dos factos e memórias contidos nos Arquivos.
É bem verdade que um povo se perde quando fica amnésico e perde as suas raízes!
Importa desde já afirmar e salientar o que de todos é sobejamente conhecido: os Direitos Humanos Fundamentais incluídos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) das Nações Unidas de 1948, ratificada pela esmagadora maioria dos Estados e Governantes, continuam por se cumprir para uma parte muito significativa da população do planeta Terra. A Pobreza é um dos factores condicionantes e determinantes desse não respeito e também da mortalidade e injustiças hoje observadas no Mundo.
É pois muito útil, diria mesmo imprescindível e justo, que os Arquivos contenham também, nos seus acervos, dados objectivos da evolução da pobreza no Mundo, de tão grande relevância se quisermos discutir, em profundidade e objectivamente!, sobre Direitos Humanos.
Ao que acabo de referir sobre a situação tão precária dos Direitos Humanos para boa parte da população mundial, temos que acrescentar, como factor particularmente nefasto para a situação actual no Mundo, a vigente perversa e espúria tendência, assumida às claras, de se substituir a Força do Direito pelo Direito da Força que gera, ipso facto, como corolário imediato e infelizmente amiúde observado, o surgimento de caldos políticos incentivadores ou permissivos à tortura com comportamentos, particularmente desumanos, cínicos e hipócritas que importa desde já estigmatizar e arquivar na nossa memória colectiva a fim de que não possam ser negados amanhã por aqueles que os estimularam. Dispondo de Arquivos, a sociedade humana democrática poderá confrontá-los, assim o entenda!, com as suas atitudes passadas.
A esse título, e como meros exemplos de práticas condenáveis muito recentes, que importa não sejam esquecidos, refiro: a campanha agressiva e sistemática da administração Bush contra o Tribunal Penal Internacional e o protocolo de Quioto; o desencadear de guerras preventivas ilegais pretensamente fundamentadas em descaradas mentiras e outras falácias; as torturas quase generalizadas praticadas sobre prisioneiros de guerra e outros resistentes, em países ou territórios ocupados, por forças de países assumidos e vistos como democráticos, nomeadamente nas iníquas, inqualificáveis e famigeradas prisões de Guantanamo em Cuba, de Abu Ghraib no Iraque e a “1391” em Israel; e as transferências de prisioneiros para países “amigos e aliados” para aí serem barbaramente interrogados, torturados ou executados...sob o pretexto de “luta contra o terrorismo”! Essas iniquidades (nunca será demais repetir, por mais que nos doa!), são praticadas descaradamente por países que constitucionalmente e por tradição histórica são, aparentemente!, apologistas e defensores da Democracia.
Não nos esqueçamos nunca - e os Arquivos relembrando-nos tais actos horrorosos aí estão para impedir que tal aconteça (e é por isso que deverão permanecer invioláveis) - o que fizeram os nazis aos resistentes, por eles apelidados de terroristas! É um alerta oportuno, penso eu, porque já hoje se vislumbram, por parte de alguns historiadores, escritores e cineastas...a tentação e vontade de humanização e branqueamento dos comportamentos genocidários imundos de facínoras do quilate de Adolfo Hitler, Staline, Pol Pot, Pinochet e outros.
É útil, diria mesmo indispensável, que se aborde e se trate com objectividade, graças aos arquivos ainda disponíveis, o que realmente aconteceu nos períodos negros da História da Humanidade. Quero referir apenas, en passant, e sem recuar ao louco Nero ou aos massacres dos Cátaros ou da São Bartolomeu em França, os genocídios dos índios nas Américas, nomeadamente na América do Norte, o genocídio dos aborígenes na Austrália, a matança no Gueto de Varsóvia, a mortandade nos campos de concentração na guerra dos Bóeres na África do Sul, o genocídio dos arménios pelos turcos, os campos de extermínio nazis (com o genocídio dos doentes mentais, velhos “inúteis”, judeus, ciganos e resistentes), os gulags da URSS estalinista ou da China maoista, o genocídio no Camboja, Sudão, Ruanda, Burundi, na R.D. do Congo, as matanças no Chile ou na Argentina, o famigerado plano Condor na América Latina...assim como os milhões de inocentes apagados como Anne Frank e os milhares de lutadores pelos Direitos Humanos e resistentes desaparecidos, torturados e fuzilados no Mundo inteiro como, por exemplo, Wallenberg e Jean Moulin.
É neste ponto fulcral, quanto a mim, que os Arquivos adquirem toda a sua importância porque são a nossa “MEMÓRIA IMPRESCINDÌVEL” e uma das muralhas, com a Educação e o Direito Internacional, hoje tão mal tratado, que a sociedade humana civilizada institui, contra a barbárie. Os Arquivos têm, quanto a mim, sobre a matéria dos Direitos Humanos, repito, um duplo objectivo essencial: - não permitirem, ou dificultarem, que se apaguem ou branqueiem crimes passados e com as fontes sábias que contêm, desde que acessíveis e promovidas; - servirem de faróis que, iluminando-nos!, podem e devem contribuir decisivamente para a implementação de boas práticas conducentes à construção de um Mundo mais belo, harmonioso e sábio.
Efectivamente, a conservação de documentação objectiva (relatórios, correspondência diplomática, militar, jornalística, fotográfica, livros, filmes, diários e outras provas documentais) e a possibilidade do seu acesso por parte dos historiadores, investigadores e simples cidadãos assim como das escolas e organizações da sociedade civil é insubstituível a fim de que não seja permitido a certos poderes instalarem ditaduras do vazio e do esquecimento fazendo crer aos seus povos que foram sempre “heróis e mártires”... o que seria muito prejudicial para todos aqueles que pugnam pela Democracia e pela Liberdade.
Os Arquivos, como certos lugares paradigmáticos (tais como museus, bibliotecas, monumentos, campos de concentração, de tortura, de extermínio...ou certas prisões), são locais insubstituíveis para recordar a Memória e a História colectiva que importa não esquecer: ao conservarem recordações, provas e factos eles permitem evitar interpretações falaciosas nomeadamente no que diz respeito às violações dos Direitos Humanos como no caso de grande actualidade, e relevância política sobre o possível futuro alargamento da União Europeia à Turquia, do genocídio dos arménios pelas autoridades turcas de 1915 a 1918 durante a primeira Guerra Mundial.
Na Península Ibérica, e nisso o conteúdo dos nossos arquivos teve, tem e terá sempre um papel essencial, importa que nunca nos esqueçamos, nomeadamente, de três períodos de graves e violentos atropelos dos nossos direitos e garantias colectivos. Refiro-me explicitamente:
_ 1º) à expulsão, ou à conversão coerciva, dos muçulmanos e judeus em Espanha, pelos reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão, após a tomada de Granada em 1492 e em Portugal a expulsão dos judeus, após a morte do insigne Rei D. João II em1495, com o advento do rei D. Manuel I e suas negociações matrimoniais com as filhas dos reis católicos.
_ 2º) à Inquisição, na Península Ibérica, assim como nas colónias de Portugal e de Espanha, como período persecutório e particularmente violador dos direitos humanos. Sabemo-lo hoje sem a mínima dúvida graças aos arquivos históricos.
_ 3º) aos regimes ditatoriais de Salazar e Franco.
Quanto a Portugal, sobre a matéria em apreço, nunca é de mais relembrar a perseguição enraivecida, encarniçada, destruidora e humilhante que o regime de Salazar moveu aos lutadores pela liberdade e nomeadamente ao insigne Cônsul Aristides de Sousa Mendes, incontestavelmente um dos Grandes Heróis da História de Portugal, do Mundo e dos valores universais que a todos deveriam nortear.
Haveria, é certo, mais exemplos, mas creio que os exemplos citados são suficientemente elucidativos para demonstrarem o papel central e a importância insubstituível dos Arquivos no estudo da violação dos Direitos Humanos e na luta pela defesa desses mesmos Direitos também nos nossos Estados mas tal é, evidentemente válido para o Mundo inteiro se pretendemos evitar que se repitam derivas totalitárias, se já não estão a acontecer!, com os seus clamorosos, infamantes e sistemáticos crimes contra a Humanidade.
É a conservação dessa memória negra da Humanidade assim como dos nobres feitos de heróis e resistentes que importa ver salvaguardada a fim de que, pela sua revisitação e estudo, amanhã talvez possamos vislumbrar um outro futuro para os Direitos Humanos hoje ainda tão violados pela pobreza, guerras e atentados sistematizados à dignidade humana por parte de certos governos e regimes políticos. É o que constantemente sobressai da leitura isenta e idónea dos Relatórios Anuais da Amnesty International e dos alertas constantemente lançados pela Asian Human Right Commission, pela Human Rights Watch e por outras instituições que se consagram à defesa dos Direitos Humanos.
Para que amanhã ninguém diga que não sabia, para que amanhã ninguém diga que nunca ouvira, para que amanhã ninguém diga que jamais vira!
É disso que se trata quando se fala da importância do DEVER DE MEMÓRIA!